domingo, 29 de agosto de 2010

Fatores que influenciaram a consolidação do capitalismo

1. As atividades da burguesia e as novas concepções sobre o Trabalho
A partir do século XII, no entanto, a expansão populacional, o renascimento das atividades urbanas e comerciais, os contatos com o Oriente através do Mediterrâneo, tudo isso produz lentas mudanças: “Há praticamente uma inversão entre a Idade Média e o Renascimento, com uma crescente supremacia do ‘fazer’ sobre o ‘saber’. Neste período renascentista despontam a admiração pelo trabalho e o valor dele, mas principalmente o artesanal e o artístico (do escultor, do pintor, do arquiteto e do cientista).” (Carmo, p. 26). Lentamente, o trabalho artesanal, ligado aos ritmos cotidianos da vida familiar, vai dando lugar à especialização, à separação entre vida e trabalho, como o surgimento das corporações, que reuniam artesãos por categorias profissionais. Donos ainda de sua ferramentas, de seu tempo e da matéria-prima, não eram, vendedores de força de trabalho.
Quando chegamos ao século XVI, período da expansão atlântica européia, a idéia de trabalho manual como criador de riqueza está instalada e, de resto permanece ainda hoje. O capitalismo, em sua fase de acumulação primitiva, começa a direcionar as atenções para o trabalho como elemento implementador do crescimento econômico e da riqueza.

2. O Capitalismo Emergente e a Ética Protestante
Ao longo do século XVI, a Reforma Protestante, em especial sua modalidade calvinista, passa a alterar profundamente o sentido do sofrimento derivado do trabalho, considerado a partir daí como motivo de orgulho e sacrifício redentores Max Weber, em seu livro clássico intitulado A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, procurou comprovar que haveria uma íntima relação entre a idéia protestante de vocação e a compulsão par ao lucro. Assim, ele demonstra a existência de uma ligação estreita entre a dimensão religiosa das práticas sociais e o desenvolvimento das práticas econômicas. O enriquecimento, derivado do trabalho, da moderação e da poupança, portanto o sucesso material derivado do êxito profissional, sinalizariam a predestinação individual para a salvação da alma: “Para o protestantismo, é condenável o desfrute dos bens e tudo o que disso advenha, como a ociosidade e as tentações da carne. Não se deve, pois, desperdiçar o tempo, considerado dádiva divina. A maior produtividade no trabalho e a recusa ao luxo deram origem a um estilo de vida que influenciou indiretamente o espírito do capitalismo, criando um clima propício para a acumulação de capital. Sendo o trabalho a melhor oração, a obtenção de êxito e prosperidade através dele revela a condição de ‘eleito’ para entrar no reino de Deus. Trabalhar passou a constituir a própria finalidade da vida”. (Carmo, p. 27).

3. A Acumulação Primitiva de Capital (APC)
A fase da chamada acumulação primitiva de capital, ao longo da transição feudo-capitalista acaba por determinar a lenta desagregação da ordem feudal, em um processo lento que conhecemos bem através dos estudos históricos. O que importa para nós neste momento é a avaliação do impacto da expansão dos valores burgueses na Europa em transição, e a redefinição da importância do trabalho para a constituição desta nova ordem social.
A consolidação da sociedade burguesa se estabelece fundamentalmente quando, por um lado, o processo de expropriação das terras, das ferramentas e máquinas, do tempo e da própria organização do sistema produtivo medieval (o artesanato corporativo), se conclui, gerando um oferta de mão-de-obra em grande escala. E, por outro lado, quando o sistema de fábrica cria os mecanismos de coerção e subordinação do trabalho à lógica do capital.
Mas, a criação de uma classe de trabalhadores destituídos de tudo, a não ser de sua própria força de trabalho, homens livres juridicamente, não mais amarrados à antiga rigidez estamental do feudalismo, é um processo lento e doloroso, marcado pela recusa sistemática desse operariado em formação em aceitar passivamente a dominação.
Portanto, essa tensão entre as necessidades da ordem burguesa em consolidação e a recusa das classes trabalhadoras em aceitar o tempo e o ritmo da indústria, acabará por determinar tecnologias de disciplinarização da sociedade, segundo o pensador francês Michel Foucault, para viabilizar o projeto social da burguesia. Essas tecnologias se concretizarão sob forma de leis rigorosas para a punição dos “improdutivos” em geral, além da criação de instituições para o enquadramento e o ensino profissionalizante para os desqualificados ou mesmo resistentes à nova ordem.
“No século XVI, a loucura e a pobreza ainda eram consideradas manifestações de Deus, e, consequentemente, pretexto para suscitar nas pessoas a caridade. Os desvalidos ofereciam aos cristãos a possibilidade de praticar o ato de bondade é, assim, salvar-se ... Já no século XVIII ... ocorre a perda da dimensão mística da miséria e torna ligar a idéia de desordem e de indisciplina; recusar-se a trabalhar tornou-se, então, um desafia de Deus, que não criou o ser humano para a revoltante inatividade do ócio. ... Na Inglaterra, criaram-se as Workhouses, também apelidadas de ‘bastilhas dos pobres’. O século XVII, inaugura o suo do internamento como regulador da mão-de-obra e, ao mesmo tempo, como ocultamento da miséria, evitnado, assim, os inconvenientes sociais e políticos de deixá-la à mostra”. (Carmo, p. 30).

4. A Ideologia do Trabalho
Até meados do século passado, acreditava-se que a prática do trabalho compulsório poderia disciplinar a mão-de-obra. Ao mesmo tempo, poderia amenizar as tensões sociais derivadas do processo. A partir da segunda metade do século XIX, percebendo o fracasso das casas correcionais, a burguesia industrial muda sua finalidades: elas passam a abrigar os considerados loucos. Portanto, ela tornam-se imprestáveis para a disciplina do trabalho, que se transfere então para os espaços de convívio social das classes trabalhadoras propriamente ditos (a reorganização espacial do local de trabalho, a remodelação do espaço urbano para neutralizar a ação política das classes subordinadas, etc.).
Enquanto isso, as “classes ociosas” também se transformam. Se a burguesia condena o ócio indistintamente, ela o pratica, mas sob a forma de “cansativos deveres sociais” (ir a clubes, praticar esportes, fazer caridade, etc.), ao mesmo tempo que procura criar mecanismos de disciplina social para as classes trabalhadoras. Importava então difundir a ideologia do trabalho, como mecanismo de coerção para o trabalho.
“Não seria exagero afirmar que o maior problema, em face da moderna organização industrial e social, foi o esforço para construir um efetiva ideologia que submetesse a massa proletária ao gosto pelo trabalho. Para essa modernização o trabalho livre provava ser mais rentável e eficiente, pois exigia menos inversão de capital na vigilância e no gerenciamento. Para confirmar essa constatação surgiram novas teorias, que alardeavam a importância e as vantagens do vínculo entre capitalismo e trabalho livre”. (Carmo, p. 35). Em outras palavras, o discurso liberal substituirá, ao longo do século XIX, as pregações religiosas ou moralizantes a respeito da disciplina para o trabalho.

5. O Discurso Liberal e a Consolidação do Capitalismo.
Surgido ainda no século XVII, com o pensamento de John Locke (como visto anteriormente), o liberalismo pode ser entendido em sua dupla dimensão político-econômica, como termo político... “designa o ponto de vista daqueles cuja principal preocupação em política é adquirir ou preservar algum grau de liberdade dentro do controle exercido pelo Estado ou por outras entidades que possam ser consideradas contrárias à liberdade humana... No século XIX... o liberalismo tornou-se uma crença na importância do indivíduo, contraposto a uma entidade coletiva, encarnada pelo Estado ou pelo povo”, como termo econômico... “liberalismo implicava resistência ao controle estatal da economia e ... de formas de monopólio e de interferência, desnecessárias e ultrajantes, por parte do governo, na produção e distribuição da riqueza. (Dicionário de Ciências Sociais: FGV, p. 686).
Partindo portanto dos pressupostos do não intervencionismo estatal na economia e do primado do indivíduo sobre o grupo, o liberalismo estabelece um duplo discurso: da “liberdade” que os indivíduos possuiriam para vender sua força de trabalho e, ao mesmo tempo, da inevitabilidade da miséria. Ela seria fruto da incompetência individual na luta pela sobrevivência, o que naturalmente desobrigaria a classe burguesa de resolver tais problemas.
“O historiador contemporâneo Harold J. Laski, em seu estado acerca do liberalismo europeu, constata que esse ideal econômico se preocupou mais em defender os interesses da propriedade do que em proteger aquele cidadão que só possuía sua força de trabalho para vender. Assim, os ideais liberais se converteram em uma ideologia disciplinar da classe trabalhadora.” (Carmo, p. 37)

Dentre os principais autores do pensamento econômico liberal destacamos anteriormente Adam Smith (1723-1790), que estabeleceu ser o trabalho a verdadeira e única fonte geradora de toda a riqueza. Segundo ele, através da divisão social do trabalho os benefícios decorrentes do aumento da produção seriam melhor distribuídos na sociedade, de acordo com interesses e capacidades individuais. Em sua obra, A Riqueza das Nações, ao apontar a origem do excedente no trabalho e também o modo como ele é apropriado pelos donos dos meios de produção, Smith acaba por lançar as bases de uma teoria sobre a exploração do trabalho, cujo principal representante foi Karl Marx.

6. A crítica Marxista.
Vimos que, segundo Marx, só o trabalho gera riqueza e justamente quem a produz não tem acesso nem direito a ela. Uma de sua idéias centrais é a de que através do trabalho o homem liberta-se do controle da natureza, passando a moldá-la de acordo com suas necessidades. Nesse processo o homem se “neutraliza” e a natureza se “humaniza”. Olhando o processo produtivo, em especial no capitalismo, sob a perspectiva da circulação das riquezas, tem-se a impressão de uma igualdade entre dar e receber. Mas ao penetrarmos na intimidade do processo produtivo fabril, poderemos perceber a alienação do trabalho para a produção e acumulação de riquezas privadas.
Diz Marx que no trabalho o homem sente-se “fora de si mesmo”, só sentindo-se ele mesmo “quando fora do trabalho”. “Marx assegura que o objetivo da revolução socialista não se cumpre com a emancipação da classe trabalhadora, mas com liberação do homem em relação ao trabalho. A escritora e filósofa francesa Simone Weil, que por algum tempo se submeteu ao trabalho fabril, afirmava que a esperança de uma liberação final do fardo do trabalho ‘é o único elemento utópico do marxismo’ e deveria tornar-se a verdadeira força motriz de todos os movimentos trabalhistas.
Para ela, ‘o ópio do povo’ – que Marx acreditava ser a religião – é, na realidade, o trabalho... Sob a influência do pensamento de Marx, impregnado da ideologia do trabalho de seu tempo, boa parte da velha escola marxista ortodoxa fez também uma intensa exaltação do trabalho ao elevá-lo a fator essencial da vida real dos homens, fazendo coro, ainda que inversamente, à veneração levada a cabo pelos capitalistas”. (Carmo, pp. 38-39)

7. Solidariedade Mecânica e Solidariedade Orgânica
Durkheim considerava que o trabalho de classificação das sociedades – como tudo o mais – deveria ser efetuado com base em apurada observação experimental. Guiado por esse procedimento, Durkheim estabeleceu a passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica como o motor de transformação de toda e qualquer sociedade.
Para ele, a solidariedade mecânica predomina nas sociedades classificadas como pré-capitalistas, tradicionais, onde a coesão social se estabelece através dos laços de parentesco, da religião e dos costumes tradicionais. Nessas sociedades a divisão do trabalho social é relativamente simples, com pouca especialização de funções e os indivíduos estão profundamente submetidos à consciência coletiva, da qual não escapam, ou seja, a autonomia individual praticamente inexiste, a coerção social é inescapável para o indivíduo.
A solidariedade orgânica predomina nas sociedades capitalistas modernas, em que a coesão social se estabelece por laços de interdependência entre os grupos e indivíduos. Por exemplo, na medida em que cada membro da sociedade adquire uma profissão mais especializada, passa da depender cada vez mais do outro e assim sucessivamente. Na medida em que a divisão do trabalho social nessas sociedades é mais complexa, apresenta maior especialização de funções, a consciência coletiva se diversifica. Isto tende a gerar relações de cooperação e complementaridade entre os homens. Porém , na ausência de consenso sobre as regras modernas de solidariedade, as condutas individuais podem apresentar “desvios” em relação ao que seria “normal”, podem ocorrer rupturas nas regras socialmente estabelecidas.

CARMO, Paulo Sérgio. A ideologia do trabalho – 1ª ed. – São Paulo, Moderna, 1998.